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Alphonsus de Guimaraens: suavidade, catolicidade e estética.

    

    Além dos ramos brasileiros de inspiração literária, a espiritualidade humana e a religiosidade compreendem um aspecto ontológico do homem e o princípio fundamental da configuração da realidade. Nesse quesito, o poeta Alphonsus de Guimaraens destaca-se, definitivamente, dos seus colegas simbolistas, como o próprio Cruz e Sousa, um dos maiores simbolistas do mundo.
    A forma com que trabalha o mistério da alma humana não é somente um recurso poético, é, por natureza, o singular reflexo de suas experiências de vida. A morte precoce de sua noiva levou-o a mergulhar, profundamente, em reflexões que explicassem o motivo maior da prematura partida de sua amada. Católico e dono de uma profunda sensibilidade poética, Alphonsus de Guimaraens conferiu aos seus versos uma enorme vivacidade espiritual. Com várias menções aos elementos litúrgicos da Santa Missa, o poeta cristaliza, na métrica e na rima dos seus tantos sonetos, a magnificência da Verdade que transcende o lógico, que atravessa o espaço do sonho, rompe os elos da loucura e, por fim, ganha asas na amplidão do Céu, junto a Deus, à Santíssima Virgem Maria e ao coro angelical.
    Diferentemente de Cruz e Sousa, por exemplo, que transmutou o próprio sofrimento pessoal em uma amplificação da dor humana, Alphonsus converte a dor da perda da amada em uma poesia doce e suave, um verdadeiro suplício musical de ternura e amor. 
    Para melhor entendermos a essência e a sensibilidade poética de Alphonsus, analisaremos os três principais poemas que compõem sua obra literária:

Hão de Chorar por Ela os Cinamomos...



Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria.. . "
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"

(GUIMARAENS, Alphonsus de)


    No soneto acima, vê-se, claramente, o retrato da morte da noiva de Alphonsus. O "eu lírico" confunde-se com o autor, ao lamentar a perda da amada. Diante disso, a sensibilidade do poeta produz efeitos graciosos de dor e suavidade que são percebidos, enfaticamente, pela menção de elementos naturais como os próprios cinamomos, as estrelas, a lua, os lírios, a rosa. As aliterações das letras "m" e "d" no decorrer do poema enfatizam a fragilidade da pessoa amada já perdida, bem como a própria fragilidade do coração amante e saudosista. A última estrofe do soneto caracteriza a religiosidade do poeta e do "eu lírico" e reafirma o intenso amor existente entre o "eu lírico" e a donzela por quem choram também os cinamomos. O soneto, embora seja marcado por grande lirismo, é também uma manifestação de luto e sofrimento, sofrimento, elegantemente, transformado em um terno suplício:  Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"

 A presença da lua nos poemas de Alphonsus de Guimaraens é, na maioria das vezes, uma constante muito utilizada, visto que é a marca da beleza e da pureza, características atribuídas à finada noiva do poeta. Termos como "sonho", "branca" e "anjo" são, também, bastante recorrentes ao vocabulário de sua poesia.

Vejamos, agora, o poema "Ismália":

Ismália



Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava longe do céu...
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar. . .
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

(GUIMARAENS, Alphonsus de)

    
    Percebe-se, pois, neste poema, a personificação do sonho e da loucura. Na primeira estrofe, Ismália encontra-se presa em uma torre e observa o céu noturno, mais especificamente, a figura lunar e, em seguida, mira o reflexo da lua no mar, o que lhe inflama um desejo de liberdade (querer as luas do céu e do mar). Na segunda estrofe, tal desejo é bem claro quando se afirma "Queria subir ao céu, queria descer ao mar...". O canto de Ismália, descrito na terceira estrofe, é enfatizado pela métrica, em redondilhas maiores, do poema. Em seguida, Ismália, querendo as duas luas, salta da torre rumo ao mar, morrendo (Sua alma subiu ao céu,/Seu corpo desceu ao mar...). Vemos, pois, neste poema, que a lua simboliza a amada do poeta. O fato de a lua está no céu indica que a moça está morta e sua alma está junto a Deus, no céu. A figura de Ismália alude ao próprio Alphonsus que, distante dela, está preso à torre da solidão da vida. Deste modo, o canto de Ismália passa a ser a própria poesia do autor.
O desvario de Ismália e o seu salto para as águas revelam o sonho do "Eu lírico" em rever sua amada. No entanto, tal fato seria possível, apenas, se o "eu lírico" também morresse, estando seu corpo no mar (terra) junto com o corpo da finada e sua alma no céu, próxima à alma da amada. A maestria com que Alphonsus aborda a morte como forma de reencontro com sua musa prometida torna o poema suave. A escolha das redondilhas maiores conduz o leitor num ritmo de canção infantil, de sonho, o que reafirma o fato de Alphonsus sonhar com sua amada, novamente... 
    Quando Alphonsus diz "No sonho em que se perdeu,/Banhou-se toda em luar...",  podemos fazer uma associação ao primeiro poema em que ele escreve "Os meus sonhos de amor serão defuntos...", o que permite a conclusão de que, em sua vida, o poeta teve um choque de realidade ao deparar-se longe de sua amada, saindo de um sonho, entrando em uma dura realidade de solidão. O fato é que, ao contrário dos poetas românticos, Alphonsus não pensou na hipótese de suicídio, dada a sua religiosidade católica. A visão de que, somente quando ele morresse, encontraria a esposa no céu o concedeu a resignação diante do sofrimento. O salto de Ismália, portanto, não pode ser visto como um pensamento suicida, embora muito o pareça, mas sim como a queda do corpo (o falecimento) e a subida da alma (a salvação).

    E, por fim, analisaremos, aqui, o poema "A Catedral" 

A Catedral



Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino geme em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
    
(GUIMARAENS, Alphonsus de)

    Além do luto que carrega pela morte da amada, percebemos neste maravilhoso poema a catolicidade dos versos de Guimaraens. A figura da catedral, dos sinos, das bençãos de Jesus, do raio de luz emanado do altar e da sacralidade do altar rementem ao coração do próprio "Eu lírico". No entanto, ao passar dos versos, nota-se um "eu lírico que sofre" e um sino que se compadece da dor sofrida e diz "Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus" (badalar dos sinos de uma igreja). A gradação do refrão do poema ( E o sino canta; e o sino clama; e o sino chora; e o sino geme...) reflete não só a transformação da alegria em tristeza, do dia em noite, mas, também, a própria morte do sonho do "eu lírico". Os versos "A catedral ebúrnea do meu sonho/Afunda-se no caos do céu medonho/Como um astro que já morreu" referem-se à própria morte da alegria do poeta. A catedral é, pois, o próprio sonho (desejo) puro e amoroso do "eu lírico" que "afunda-se no caos do céu medonho" quando se depara com a tão funesta notícia da morte de noiva amada. 
    Mais uma vez, podemos associar os versos citados, acima, aos versos do segundo poema "No sonho em que se perdeu,/Banhou-se toda em luar..." e aos versos do poema Hão de chorar por ela os cinamomos: "Os meus sonhos de amor serão defuntos...", confirmando a essência, a sensibilidade poética e a religiosidade de Alphonsus de Guimaraens.
  
    Num tempo em que a fé encontra-se esquecida e o verdadeiro amor é trocado pelo banalizado eros, num tempo em que a arte, principalmente a arte sacra, é vilipendiada e rejeitada, a leitura da obra de Alphonsus de Guimaraens torna-se um grande alento à alma. O intenso mergulho que Guimaraens fez na alma humana, no sofrimento e na realidade da vida e da morte faz o homem refletir sobre o mistério da Criação, sobre a existência do homem e sobre o amor e a presença de Deus no mundo. A suavidade, a doçura e a graciosidade dos versos de Alphonsus o tornam inclassificável nos movimentos literários, colocando-o nos grandes patamares da poesia, no mesmo nível que Camões e Cervantes, por exemplo, que tanto falaram do sonho e do amor. Alphonsus de Guimaraens é, sem dúvidas, ao lado de São José de Anchieta, um dos maiores poetas de língua portuguesa de todos os tempos.

PAX ET BONUM!


   





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