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Castro Alves & Cruz e Sousa: Literaturas que voam


A literatura brasileira é um vasto oceano que, em suas diversas ondas, reflete a singularidade universal da alma humana. Desde os pequenos questionamentos da vida aos mais portentosos sentimentos, passam as águas da literatura brasileira. Deste profundo e vasto oceano lírico, alçaram vôo dois dos maiores poetas da língua portuguesa: Castro Alves e Cruz e Sousa.
    É insensato dizer, apenas, que Castro Alves foi um poeta da terceira geração do romantismo e que sua obra é uma denúncia poética à condição da escravatura no Brasil imperial. Antes de tudo, é preciso dizer que Castro Alves foi o poeta da sensibilidade e dos detalhes. A propensão ao sublime, o lirismo e capacidade de ver além do alcance revestem o Poeta dos Escravos e o tornam, verdadeiramente, um "condor da poesia".
    Para melhor explicarmos a majestade poética de Castro Alves, vamos analisar um trecho do poema "O Navio Negreiro" e, após a análise, veremos o poema "As duas flores"...


III
 
"Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
 

IV
  
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar... 

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs! 

E ri-se a orquestra irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais... "

(Alves, Castro)


    Neste trecho, canto III e as três primeiras estrofes do canto IV, notamos que o "eu lírico" está acompanhando o vôo do Albatroz e, num dado momento, é percebida a presença do Navio Negreiro. A partir deste ponto, o observador pede para a ave descer e, neste movimento, o olhar do autor se amplifica sobre a realidade do navio, numa visão de cima, tal movimento de "zoom" permeia a obra de Castro Alves, o que o possibilita captar as essências observadas. No fragmento apresentado, a ampliação da visão e a sensibilidade do poeta causam um choque no "eu lírico" (Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!), pois são captados os detalhes da violência e das torturas ocorridas na embarcação. Desta forma, os adjetivos empregados e os termos imagéticos proporcionam e proporcionaram aos leitores ou ao ouvintes uma epifania sobre a realidade do tráfico negreiro. 
    No entanto, a mesma capacidade do nosso poeta condoreiro de voar sobre a realidade e captar os detalhes observados confere à sua poesia lírico-amorosa uma delicadeza singular e uma imensidão de sentimentos presentes nas pequenas coisas e nas ações, propriamente, amorosas e, essencialmente, inerentes à alma amante.
    Vejamos, pois, o poema "As duas flores" presente no livro "Espumas Flutuantes":

As Duas Flores 


São duas flores unidas
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo,no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!

 (Alves, Castro, Espumas Flutuantes, 1870)
   

    Se, por um lado, o sofrimento do leitor, perante ao sofrimento residente no "Navio Negreiro", é potencializado pela sensibilidade poética de Castro Alves, por outro lado, a mesma sensibilidade caracteriza uma translocação ao sublime sentimento amoroso, marcado pela delicadeza. No poema "As duas flores", o "eu lírico" enxerga duas rosas, num galho de uma roseira e, admirado, amplia o olhar sobre estas duas personagens. Ao contrário do trecho do poema "Navio Negreiro", os detalhes não são detalhes físicos, mas sim essências amorosas captadas na cena. Na primeira estrofe, percebemos a intimidade das rosas, unidas no mesmo galho, que vivem do mesmo raio de sol e, por impressão intuitiva, concluímos que esta união alude a união de um casal apaixonado...
    Após a primeira estrofe, o "eu lírico" sensibiliza-se de tal forma que capta as essências mais profundas das duas flores que as compara com diversos elementos. (as penas das duas asas de um pássaro, as lágrimas que, aos pares, escorrem no rosto, a tribo de andorinhas, as covinhas do rosto, etc.) De forma maestra, por meio das comparações, Castro Alves demonstra a significância e a beleza da duplicidade floral observada e, por conseguinte, das almas conjugadas, isto é, o mocinho e a sua amada, personagens característicos do romantismo. Vê-se, na última estrofe, a caracterização do sentimento do "eu lírico"... A observação, por ele feita da unidade das duas rosas, o remete à distância de sua amada e ao desejo de unir-se a ela, na íntima relação do matrimônio cujo leito é a verde rama do amor, onde juntam-se,  amorosamente, as rosas da vida, os destinos, a essência do casal apaixonado.


    Se classificar Castro Alves como um simples poeta romântico é um feito quase impossível, dizer que Cruz e Souza foi um poeta, meramente, simbolista que denunciou a discriminação racial sofrida por ele é, deveras, insensato. Cruz e Souza é, em primeiro lugar um "poeta voador" com grande propensão ao sublime. Além disso, o sofrimento, a dor, as desilusões com o mundo e a sensibilidade poética são características singulares do nosso "Cisne Negro".
    Diferentemente de Castro Alves, Cruz e Souza adota uma linguagem mais rebuscada, o que define sua sensibilidade como uma sensibilidade transcendente, já que parte de sua obra faz menção a elementos católicos, ainda que de forma nebulosa. O olhar de Cruz e Sousa é um olhar pessoal, isto é, não há uma visão de cima, como a visão condoreira, há, pois, a visão do homem que olha para cima e para a frente. Tal forma de olhar potencializa a temática do sofrimento e gera um efeito de catarse no leitor.
    Para melhor compreendermos a poética  do nosso "Poeta do desterro", um dos maiores do mundo, vamos analisar o soneto "Cárcere das almas" 

Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?! 

(E Sousa, Cruz)
    

    Neste soneto, percebemos o sofrimento de um "eu lírico" que, contemplando as imensidões da natureza e a vastidão do transcendente, percebe-se preso numa situação de miséria. Presa ao corpo sofrido, a alma vislumbra a eternidade do céu, onde Deus reside e reina, e  clama a liberdade, que seria a morte. Para o "eu lírico", o sofrimento presente é tão intenso e o calabouço que o aprisiona é tão duro que a morte do corpo torna-se a grande alforria para a alma. A observação do sofrimento ocorre de maneira pessoal, o que gera identificação com a vida de alguns leitores.
    Assim como o "Poeta dos Escravos", o simbolista Cruz E Sousa, também soube captar as essências dos fatos e os detalhar de modo a causar fortes impressões no leitor. Vejamos, por exemplo, o poema "Acrobata da dor":

Acrobata da dor

Gargalha, ri, num riso de tormenta, 

como um palhaço, que desengonçado, 
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado 

de uma ironia e de uma dor violenta. 

Da gargalhada atroz, sanguinolenta, 
agita os guizos, e convulsionado 
salta, gavroche, salta clown, varado 

pelo estertor dessa agonia lenta ... 

Pedem-se bis e um bis não se despreza! 
Vamos! retesa os músculos, retesa 
nessas macabras piruetas d'aço. . . 

E embora caias sobre o chão, fremente, 
afogado em teu sangue estuoso e quente, 
ri! Coração, tristíssimo palhaço.


(E Sousa, Cruz)


    Diferentemente do modo como Castro Alves retrata o sofrimento dos escravos no "Navio Negreiro", Cruz e Souza opta por utilizar uma visão mais próxima do agente sofredor. A caracterização de um palhaço que se machuca e sofre para possibilitar o riso aos outros não só reflete a própria condição do autor, mas também reverbera toda a condição dos homens que, para gerarem um bem momentâneo a outrem, são capazes de fingir que não há dor... A máscara social que os homens carregam disfarçam o verdadeiro sentimento. 
    No ponto de detalhar as ações dolosas humanas, o nosso "Cisne Negro" demonstra grande genialidade, já que amplifica a visão, não por ver além do alcance, mas, justamente, por fazer parte da trajetória visual e participar diretamente do vasto oceano sentimental humano.
    Ainda assim, Cruz e Sousa não desce dos ramos do sublime. O modo singular com que molda a linguagem reflete os anseios do poeta de viajar pelo céu, o que se pode notar no trecho, abaixo, do poema "Antífona":

 Antífona

"Ó Formas alvas, brancas, Formas claras 
De luares, de neves, de neblinas! 
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... 
Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras, 
De Virgens e de Santas vaporosas... 
Brilhos errantes, mádidas frescuras 
E dolências de lírios e de rosas ... 

Indefiníveis músicas supremas, 
Harmonias da Cor e do Perfume... 
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, 
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... 

(Trecho do poema "Antífona" de Cruz e Sousa, três primeiras estrofes)

    No trecho apresentado, a alusão à cor branca, estratégia poética típica do simbolismo, e a menção das formas, das coisas celestes, de figuras religiosas e figuras naturais remontam a uma experiência transcendental com a beleza, ainda que marcada pela dor e pelo sofrimento, evidenciados nos últimos versos das segunda e terceira estrofes... Cruz e Souza, de fato, voa pelo aspecto sublime e verdadeiro dos mistérios da vida.
    E para quem, ainda, acha que relacionar Castro Alves a Cruz e Sousa é uma atitude de um mero preciosismo, colocaremos mais um poema de Cruz e Sousa aqui:

AO DECÊNIO DE CASTRO ALVES

Quem sempre vence é o porvir!
No espadanar das espumas
Que vão à praia saltar!
Nos ecos das tempestades
Da bela aurora ao raiar,
Um brado enorme, profundo,
Que faz tremer todo o mundo
Se deixa logo sentir!
É como o brado solene,
Ingente, Celso, perene,
É como o brado: - Porvir!

Pergunta a onda: - Quem é?..,
Responde o brado: - Sou eu!
Eu sou a Fama, que venho
C'roar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos
E da natura os arcanos

Não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores
De glória, gritos, clamores,
Também vim louros trazer.

Fatalidade! - Desgraça!
Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo,
Sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas d'idéias,
De pensamento epopéias
Rolaram todas no chão!
Saindo a alma pra glória
Bradou pra pátria - vitória!
Já sou de vultos irmãos!

Foi Deus que disse: - Poeta,
Vem decantar a meus pés.
Na eternidade há mais luz,
Dão mais valor ao que és.
Se lá na terra tens louros,
Receberás cá tesouros
De muitas glórias até!
Terás a lira adorada
C'o divo plectro afinada
De Dante, Tasso e Garret!

Então na terra sentiu-se
UM grande acorde final!
O belo vate brasílio
Pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se
E aquele gênio internou-se
Na sempiterna mansão.
A sua fronte brilhava
E o áureo livro apertava
Sereno e ledo na mão...

E o mundo então sobre os eixos
Ouviu-se logo rodar!
É que ele mesmo estremece
A ver um vulto tombar.

É que na queda dos entes
Que são na vida potentes,
Que têm nas veias ardor,
Há cataclismos medonhos
Que só sentimos em sonhos
Mas que nos causam terror!...

E o coração s'estortega
E s'entibia a razão!
No peito o sangue enregela
E logo a história diz: - Não!
Não chore a pátria esse filho,
Se procurou outro trilho
Também mais glória me deu!
E quando os séculos passarem
Se hão de tristes curvarem
Enquanto alegre só eu?...

Oh! Basta! Basta! Silêncio!
Repousa, vate, nos Céus!
Que muito além dos espaços
Os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d'enganos
Não são bastante os humanos
Pra te render ovações!
Perdoa os fracos, ó gênio,
Que pra cantar teu decênio
Somente Elmano ou Camões!

(E Sousa, Cruz)


    Diante disto, a literatura brasileira ganha uma nova forma: a forma de cúpula celeste da história humana na qual Castro Alves e Cruz e Souza, realmente, conseguiram lograr um dos maiores prêmios da essência artística... Conseguiram alcançar a literatura que voa!

3 comments:

  1. Excelente! É uma pena ver uma geração que não valoriza seus próprios escritores, dos quais muito são honrados no exterior. Como dizem, a grama do vizinho sempre é mais verde. Seja pela superestimação dos gringos, ou pela bestialidade brasileira, é fato que são joias desvalorizadas tais autores.

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    1. Isto é um fato... A nossa experiência com os grandes sentimentos, com as realidades da alma humana são escassos, o que dificulta a criação de grandes obras... Aqui, em nosso país, a criação é dificultada pela mediocridade monótona das ações...
      No entanto, grandes autores mergulharam nesse aspecto e,tendo tido suas experiências interiores e experiências com o mundo, conseguiram, no quotidiano, a exemplo de Machado de Assis, conhecer e retratar os grandes pecados humanos, a influência diabólica da corrupção e os sofrimentos mais intensos,nad ações mais simples e, aparentemente, insignificantes...
      O fato é que não reconhecemos nossa literatura porque nem mesmo reconhecemos a fé em Deus, nem a espiritualidade do homem, nem o valor da vida... Quando perdemos esse valores, perdemos a sensibilidade e, por conseguinte, passamos a aderir às falácias das correntes ideológicas neocomunistas, o que caracteriza não só uma peperseguição à fé cristã, sobretudo à fé católica, mas,também, um pleno declínio da arte e da literatura. Paz e bem †

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  2. Alguem por favor sabe algum site onde tem a análise do poema "ao decênio de castro Alves "?

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