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DOSTOIÉVSKI 1# - ESCREVA COMO OS MESTRES


O que dizer de Dostoiévski? Talvez a ausência das palavras diga mais deste ilustre e consagrado autor, de toda a sua influência, tanto na filosofia existencialista, na psicologia e na psicanálise de Freud, quanto na literatura da época, que reflete-nos toda a sua revolução até hoje. Embora grandes feitos tenham feito Stendhal, Flaubert, e até mesmo Machado de Assis, foi Dostoiévski quem introduziu e elevou a perspectiva psicológica – num tempo obscuro onde tal ciência era considerada quase uma magia – acima dos fatos em si, com o foco principal, não nos acontecimentos, mas nos pensamentos, traumas e complexos de cada personagem.
A história em seus livros não são meras histórias, mas argumentos; argumentos que visam sustentar uma tese, a profunda visão do autor, que lida com casos estremos de onde a capacidade humana é capaz de compreender.
Cristão convicto, e defensor da fé, sempre pregava a redenção de seus personagens, através da culpa, da angústia. Criticou o niilismo – que tanto estava na moda – e eternizou um questionamento acerca da moral divina, dos valores morais objetivos, com o discurso de Ivan Karamazov, resumido em “Se Deus não existe, tudo é permitido”, ao passo que, nem por isso, deixava de atrair a atenção e a admiração daqueles que seguiam o que tanto criticava, como Friedrich Nietzsche, que uma vez escreveu, “Dostoiévski é o único psicólogo que tem algo a me ensinar”, embora tenha feito o russo engenharia.
Seu estilo de escrever, apressado, à beira da miséria a qual sempre se encontrava, torna-o único; e seus personagens, criam vida, saem do papel, e ilustra-nos a própria personalidade do autor: confusa, atormentada e orgulhosa.
Enfim, um gênio.


Write Like The Masters

William Cane, embora tenha uns livros meio estranhos, se destaca, ao meu ver, com o Write Like the Masters: Emulating the Best of Hemingway, Faukner, Salinger, and Others, onde propõe algo ambicioso: analisar o estilo de alguns autores consagrados, e escancarar todos os seus segredos ao leitor.
Assim, como não existe uma tradução para o português, compadeci-me dos 95% semianalfabetos que existem nesse país, dos quais não possuem proficiência na língua do Tio Sam, e pus-me a traduzir o negócio. De todos os autores analisados no livro, os que mais se destacam são Geroge Orwell, Ernest Hemingway e Dostoiévski, o que nos renderá mais algumas publicações.
Lembro-vos, meu caros, que por mais que eu não faça parte da maioria, não sou nenhum filólogo, ou tradutor profissional. Garanto, entretanto, que farei o melhor.

E que os devidos créditos sejam dados. Se caso você, leitor, seja dos 5%, seria interessante, após esta leitura, dar uma olhada no livro do William Cane. Esta é a forma que eu o pago por tomar seu texto emprestado.

O que segue-se é o primeiro trecho e a primeira técnica descrita no capítulo sobre Dostoiévski.


***

CAPÍTULO 4
Escreva Como Dostoiévski
 
Há uma coisa a qual Dostoiévski faz melhor do que qualquer outro escritor: mergulhar os leitores num vívido mundo, onde a humilhação e a vergonha mostram-se emoções abrangentes, um mundo no qual os personagens se tornam desorientados pelos seus próprios sentimentos. “Dostoiévski constrói uma narrativa que envolve os leitores, imergindo-se na vergonha¹. Como veremos, a técnica a qual permite ao russo fazer tudo isso, pode também ajudar você, leitor, a escrever grandes cenas focadas, não apenas em vergonha e humilhação, mas em qualquer sentimento, qualquer emoção.
(...)
1. Martinsen 2003:12.

1# - DOSTOIÉVSKI E SEU SOFISTICADO CONTROLE DO PONTO DE VISTA

Para contar uma história com desesperadora intensidade, Dostoiévski viaja de mente em mente numa cautelosa sofisticação, permitindo-o tocar em qualquer que seja a mais relevante emoção para a determinada cena. Emprega um método específico que envolve o cenário, a imersão numa mente, e a mudança para os pensamentos de outro personagem. Uma vez que você domine tal técnica, poderá escrever as mais intensas cenas.
Dostoiévski começa, no Capítulo IV da Quinta Parte de Crime e Castigo (1866), construindo um cenário. Esta é uma das melhores cenas do romance, narrando como Raskolnikov revela-se a Sônia como o responsável pelo assassinato ocorrido alguns dias antes. E embora, ele firmemente espere a rejeição da moça, esta, porém, o surpreende quando lhe diz que sente muito por ter que ouvir aquilo, vendo-o com a vida arruinada por cometer tão estupido ato. A cena se dá de forma rápida, num apartamento.

“ (ele) apressou-se a abrir a porta e logo à entrada procurou Sônia com os olhos. Ela estava sentada de cotovelos sobre o velador, e ocultava o rosto nas mãos, mas quando viu Raskolnikov, levantou-se logo e correu ao seu encontro, como se estivesse à espera dele. ”
(Crime e Castigo; tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes)

Até mesmo o cenário da cena possui um senso de urgência. É escrito com a intensão de que o leitor saiba quem está presente e onde se encontram em relação ao outro. O próximo passo que se segue no texto é penetrar na mente de um dos personagens. É ainda mais fácil fazê-lo caso o sujeito esteja no centro de um tumulto, rodeado por fortes emoções; e certamente esse é o caso aqui.
Pois, ao que Raskolnikov acaba de confessar a sua culpa do assassinato de Lisavieta, Dostoiévski adentra sua mente:

“E mal pronunciara estas palavras quando, outra vez, aquela sensação já conhecida lhe gelou a alma de repente; olhou para ela e, de súbito, pareceu-lhe ver o rosto de Lisavieta no rosto dela. Lembrava-se claramente da expressão da cara de Lisavieta quando ele se aproximou dela com a machadinha e ela se afastou recuando até a parede, estendendo a mão, com um medo completamente pueril no rosto, tal como uma criancinha quando, de súbito, começam a assusta-la com alguma coisa e quando, de uma maneira tenaz e inquieta, fixa os olhos no objeto do seu terror, recua e, estendendo a mãozinha para a frente, se põe a chorar. ”
(Crime e Castigo; tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes)

Tal descrição é de uma sofisticação artesanal: é brilhantemente imersa na mente de Raskolnikov, a revelar emoções profundas. Típico de Dostoiévski, expande-se sobre um tema de vergonha porque Raskolnikov se sente, verdadeiramente, envergonhado pelo que fez; é embaraçoso e humilhante ter que revelar à Sônia que é o assassino. A ousadia de aprofundar-se num tumulto interior mostra o que Dostoiévski é capaz de fazer.
Por último, ocorre então a mudança de perspectiva, para o próximo personagem. Dostoiévski brinca com tal técnica, como se fosse a coisa mais estúpida do mundo para se fazer. Uma vez que ouvimos os pensamentos atordoados de Raskolnikov, é dito-nos:

“Sônia lançou-lhe um olhar rápido.
Depois da primeira compaixão dolorosa e lacerante pelo infeliz, outra vez a horrível ideia do crime voltava a horrorizá-la. Na mudança de tom da voz dele reconhecera, de repente, o assassino. Olhou para ele, espantada. Ela ainda ignorava por que, como e para que ele se tornara um criminoso. ”
(Crime e Castigo; tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes)

Veja o quão rebuscada é essa transição. Dostoiévski não a faz quando se passa um pensamento qualquer pela cabeça de Sônia, mas sim, quando esta se encontra na compaixão dolorosa, num conflito tortuoso de devaneios e sentimentos.
Perceba que, sendo algo importante e útil de se saber, que o autor não constrói linhas aleatórias de pensamento sequenciais, mas sim, alterna-os com as ações de Sônia, ao meio de seus devaneios:

Olhou para ele, espantada. ”

E então de volta aos pensamentos:

Ela ainda ignorava por que, como e para que ele se tornara um criminoso. ”  

Essa alternação entre pensamentos e ações mantém o leitor alerta para quem está pensando, e o que este quem está fazendo, no qual aumenta a ilusão de realidade. Vemos ela ao passo que estamos em sua mente...eis o segredo!
Com tal técnica – movendo-se de mente em mente dentro de uma cena – é possível mover montanhas; ou melhor ainda, comover leitores. É isso que os romances fazem de melhor – apresenta o interior, a alma de um personagem, de sua mente, seu “sistema nervoso central”!


***

3 comments:

  1. A profundidade psicológica de Dostoiévski realmente traz uma universalidade bastante única, talvez uma marca de toda sua genialidade. Texto bastante interessante, parabéns!

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  2. Muito bom.
    Decoupar textos literários dos grandes escritores é uma excelente maneira de aprender com eles.

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